quarta-feira, dezembro 27, 2006

 

Vocação do Qim



Num belo jardim de Gaia, onde os raios de um sol invernal pareciam demorar-se comprazidos, sob um céu já esverdeado, no qual, como continentes em viagem, flutuavam doiradas nuvens, conversavam quatro bonitas crianças, quatro rapazinhos, decerto cansados já de brincar com as prendas recebidas pelo Natal.
Dizia um: “ontem levaram-me ao circo”. Um outro, disse, por sua vez, com ar mais sofisticado: “A mim, levaram-me a jantar com uns amigos a um hotel de luxo do Porto e em seguida fomos ao teatro. Em grandes e tristes palácios ao fundo dos quais estão o mar e o céu, vemos, a falar com voz cantante, milhares de homens e mulheres sérios e também tristes, mas muito belos e mais bem vestidos que os homens e mulheres que encontramos à nossa volta. Ameaçam-se uns aos outros, suplicam, lamentam-se, e apoiam muitas vezes a mão no bolso das calças. Ah! É muito bonito aquele teatro! As mulheres são muito belas e mais altas que as que vemos em nossa casa, e, embora, com os seus grandes olhos vazios e as faces inflamadas, apresentam um ar terrível, não contentes… E, além do mais, e isto é ainda mais estranho, apetece-nos estar vestidos da mesma forma, dizer e fazer as mesmas coisas, falar com a mesma voz…”.
Boa memória a do puto, que deve ter ouvido isto ao inteligente e perspicaz do seu progenitor.
Um dos quatro rapazinhos, que já há segundos deixara de escutar o discurso do companheiro e observava com espantosa fixidez não sei que ponto do céu, exclamou de repente: “Olhai, olhai para ali…Estão a vê-lo? Sentado naquela nuvenzinha isolada, aquela de cor do fogo, que avança devagarinho. Também ele, ele parece olhar-nos”.
“Mas quem?”, perguntaram os outros. “Pronto! Agora já não se vê!”. E, por muito tempo, ficou o rapazinho voltado para o mesmo ponto, fixando na linha que separa a Terra do Céu uns olhos onde brilhava uma indefinível expressão de êxtase e pesar.
O rapazinho cresceu e todos os outros o criticavam, dizendo: “Será ele pateta, ele e o seu Deus, que só ele consegue ver?” Efectivamente assim era, e o rapazinho tornou-se homem, homem doente e alucinado, que ainda hoje vê o seu único deus, o de Santa Comba.

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