quarta-feira, outubro 18, 2006

 

O "nosso homem"

Teve uma infância estranha. Em última análise, todas as infâncias o são.
“A infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que transportava e, muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então esse cachoar violento do que era a espuma do que poderia ser, a asa tenra batendo à chuva”
É curioso pensar que o rapaz tirava burriés do nariz quando era pequeno, mas ao os comia logo. Colava-os à parede para os comer no dia seguinte. Gostava deles secos. E é óbvio que nele se foram criando idiossincrasias irreversíveis
Há relatórios que esclarecem o seu problema; passagens aparentemente insignificantes, mas que talvez sejam efectivamente outra coisa, como o facto de…, quando lá na zona ainda ninguém sabia quem era de verdade e de onde tinha vindo aquele exemplar.
Um dia teve acesso a um desses autocolantes do Rato Mikey e colou-o no peito, em sinal de superioridade em relação aos outros rapazes do bairro em que vivia.
Já em adulto, um dia tentou publicar um artigo mobilizador, com uma grande riqueza de substantivos, uma prosa económica, medida, sempre poética, bastante peneirada na sua opinião. O artigo foi publicado num desses jornalecos que viriam a desaparecer graças a actuações com as dele e seus pares. O director tinha-o achado muito venenoso mas passava, por via das circunstâncias (!) e depois apareceram problemas por causa disso, muita gente boa foi atingida, foi uma daquelas limpezas radicais que até põem em causa o miúdo que levava as provas à tipografia, o director foi despedido, fez o pedido de demissão alegando motivos de “saúde”; parece que ele tinha mesmo uma bronquite levada da breca.
Quem despediu o director? Ora, nem mais nem menos que o despedimento veio através da magnífica Comissão de Censura do Sul, do Comércio das Laranjas e doutros organismos não menos conceituados e prudentes, o artigo era acintoso. Tinham dito todos à uma: “Nunca se viu tamanho acinte, este é o acinte tout court.
Passando os dedos pelo elo da cadeia, tudo se conjugava e batia certo.Já nessa altura usava um dos muitos pseudónimos “De Luxe”.
Um dia chegaram as andorinhas. Foi – lembro-me perfeitamente, num belo dia de Abril. Algumas, cansadas, pousaram no parapeito da janela. E ele ainda teve este pensamento: “Se estivéssemos no dia de ontem, se não tivessem mudado a folha ao calendário, aquela andorinha ali pousada e cansada, talvez nunca tivesse conseguido chegar.
Trata-se dum relatório com trezentas e doze páginas, das quais quarenta são dedicadas a essa Primavera Abençoada
A sua idiossincrasia traduz-se em transcrições verbais e escritas, gráficos, folhas amarelas para os inventários e alguns espaços em branco para meditação…

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