domingo, setembro 24, 2006

 

A grande aventura - III

A princípio a delicadeza dos outros, a sua maneira de falar, surpreendera-o e chocara-o. E depois, a pouco e pouco, adaptara-se a todos criticar, de forma secreta, definitivamente misantropo contraído.
Exigente à tirania dos seus ideais, apregoava-se generoso linguístico, pretendendo realizar o seu mais querido sonho: ter um quarto de banho privativo onde pudesse despejar todas as suas procarias...
Em tempos possuiu um Volkswagen comprado em segunda mão..
Soergueu a cabeça. Subia a Avenida toda iluminada pelo clarão das montras, muito mais que pela iluminação municipal. No passeio, os peões cruzavam-no e desfilavam.
O seu olhar prendeu-se num casal que caminhava agarrado pela cintura. Não passou duma visão fugidia. Mas a imagem permanecia presa nele.
Lembrava-lhe certos tempos quando mais novo. Fora uma história decepcionante. talvez por causa dele... por causa desse sentimento confuso de raiva, pecado e vergonha... ou então por causa dela que nunca soubera... Porque depois, sempre que pensava nisso, era como uma nostalgia em forma de baforada de calor.
Já lá iam uns bons anos. Na altura, achava-se certamente ligado ao ensino dos ingénuos.
Agora tinha quase setenta anos. Há tempos que não saia da sua crosta. Lançou uma olhadela ao relógio. Ia chegar ligeiramente atrasado. Voltou ligeiramente o pulso direito. O relógio era um presente dum "cliente", o primeiro que considerara que ele poderia ter influência sobre um caso geral.
Quando recebera a prenda, entregue directamente pela ourivesaria acompanhada dum cartão de visita, tinha-o colocado no pulso, embora o considerasse uma espécie de tentativa de corrupção. A voz da sua consciência murmurou-lhe em surdina:
"Não te faças de parvo. Aceita". Tinha-se sentado numa cadeira dum café e descansava de novo a cabeça contra a parede. Aprendera muito na vida. tanto sobre a natureza humana como sobre a astúcia, a esperteza e a malícia, como sobre a maldade, que estão na base dos negócios. Do poder. Perdera toda a candura, ganhara vastas ilusões e até alucinações. Dizia para consigo que ganhara juízo friamente prático reforçado por uma competência inquisitorial sem igual. Era bom ter passado de colaborador a profissional. Se o tempo melhorasse, amanhã iria ao Porto.
(continua...)

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